segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

REDUÇÃO DA IDADE PENAL NO BRASIL: DE 18 PARA 16 ANOS (3ª ed.)

REDUÇÃO DA IDADE PENAL NO BRASIL: DE 18 PARA 16 ANOS (3ª ed.)
Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), desembargador aposentado (Tribunal de Justiça de São Paulo), professor aposentado de direito (Universidade Católica de Santos, São Paulo).

A título de INTRODUÇÃO cumpre dizer que a matéria deste trabalho, largamente discutida no Brasil sobretudo no primeiro semestre de 2015, tem pelo menos dois aspectos principais: (a) se convém mudar o dito no artigo 228 da Constituição Federal de 1988; (b) se essa alteração constitucional tem validade jurídica. O objeto deste artigo nosso diz muito mais com o dito aspecto (b) — se é juridicamente possível essa mudança diante do artigo 5º da Constituição.
Sendo isso possível, (A) há quem defenda a inconveniência da mudança, e (B) os que sustentam o contrário: não deve haver qualquer alteração, a responsabilidade penal tem que começar quando a pessoa completar 18 anos. Alguns desses argumentos são seguintes.
(A) não convém por o menor de 18 anos não se intimidar com a punição penal[1]; esses menores carecem de capacidade plena para distinguir claramente entre lícito e ilícito penal; porque a prisão só vai deseducar esses menores, com a desvantagem de o contato deles com os maiores dentro dos presídios os tornar mais perigosos.
(B) convém sim porque a maioria das pessoa prefere viver livremente, sem ter como casa o intenso sofrimento de uma cela carcerária; quem completou 16 anos é adolescente e não criança: com 16 anos já pode até votar — artigo 14, § 1º, inciso, II, alínea c) da Constituição Federal —, de modo que pessoa com 16 anos de idade sabe a distinção entre candidato bom e candidato ruim;  o adolescente com de 16 anos ser condenado é diferente de ele cumprir a pena junto com os maiores de 18 (pode conviver com os de sua mesma idade, todos separado dos maiores de 16 anos).
Pontes de Miranda, matemático que era, aplicou a lógica simbólica ao Direito na sua obra Tratado das ações. Sete tomos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970-1978. As ações de direito material classificam-se por sua carga de eficácia; reúnem-se em cinco classes, e cada qual tem algum grau de todas as demais: declaratória (positiva, ou negativa), constitutiva (positiva, ou negativa), condenatória, executiva e mandamental (positiva, ou negativa). Ora, a possível condenação do menor de 16 anos (ação condenatória) não implica em cumprimento da pena imposta junto com os condenados de mais idade. O cumprimento da pena é objeto de outra ação proposta pelo Estado — agora já é uma ação executiva.
Seja como for, para muitos se trata de uma questão difícil de ser elucidada. Jornalista respeitado, membro da ABL (Ferreira Gullar) pensa deste modo[2]. Pode dizer-se a esse respeito ser possível alterar o conteúdo do artigo 228 da Constituição estabelecendo-se, porém na própria mudança que a vigência do texto é por cinco anos; passados estes o Congresso nacional pode revogar a dita alteração, promovendo-se até mesmo um plebiscito para se saber o mais aprovado pelo Povo brasileiro (Constituição Federal de 1988, artigo 14, inc. I). Realiza-se com isso, vantajosamente, o terceiro passo do método científico (método indutivo experimental) a experimentação[3].  
Ora bem, a outra questão — (b) se é juridicamente possível essa mudança diante do artigo 5º da Constituição — vem a ser o cerne do presente trabalho.
Nossa opinião é que sim, pode ser reduzido o início da capacidade penal, de 18 para 16 anos. Diremos abaixo não estar contida no artigo 5º matéria regrada no artigo 228 da Constituição Federal de 1988. Pensamos desenvolver esta ideia no item I. No item II falaremos mais taxativamente sobre essa possibilidade trazendo à balha os argumentos contrários do procurador geral de Santa Catarina, ao modo como os defendeu em trabalho publicado. No item III acha-se a continuação desses argumentos com a nossa resposta caso a caso. Por fim no item IV serão expostas as conclusões deste trabalho.
ISÃO INALTERÁVEIS POR EMENDA SOMENTE AS MATÉRIAS REGRADAS NO ARTIGO 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Consta da Constituição Federal de 1988 o seguinte (o que nos pareceu digno de atenção especial nós o pusemos em letra itálica):
     Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010)
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
Artigo 228: São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
                                                    
Entendeu-se no Supremo Tribunal Federal, disse alguém, que nem os direitos sociais se podem alterar por Emenda (artigo 6º).  Se fosse inteiramente generalizável a questão dos direitos sociais, imodificáveis por emenda, em nada se poderia alterar todo o respeitante a educação, saúde, alimentação, trabalho etc. [4]
II — É CONSTITUCIONALMENTE POSSÍVEL BAIXAR PARA 16 ANOS RESPONSABILIDADE PENAL
Discutimos agora os argumentos trazidos a lume pelo então procurador geral de justiça do Estado de Santa Catarina (Gercino Gerson Gomes Neto) no seu trabalho A inimputabilidade penal como cláusula pétrea”[5].
Cumpre assinalar de início ser tecnicamente imprópria a expressão “cláusula pétrea”, pois cláusula é proposição ou conjunto de proposições em que os figurantes de negócio jurídico, ou de ato jurídico "stricto sensu", fixam as suas posições nele assumidas — vantagens e desvantagens asseguração pelo Direito (um dos sete mais importantes processos sociais de adaptação). Trata-se, pois, na cláusula de questão fática (parte de suporte fático sobre que vai incidir regra jurídica), não se cuida nunca de norma de direito. Ora bem, as normas de uma constituição são regras susceptíveis de incidir; não são suporte fático.  
Vamos, pois, a alguns argumentos do ilustre procurador de justiça do Estado de Santa Catarina — dr. Gercino Gerson Gomes Neto.
            Argumento:         
“O parágrafo 2o do artigo 5o diz que são direitos e garantias individuais as normas dispersas pelo texto constitucional, não apenas as elencadas no dispositivo mencionado”. [...] Diz o parágrafo 2o do artigo 5o: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" [...] Assim, este parágrafo nos traz duas certezas.

Resposta: o fato de não estarem incluídos é diferente de aí colocarmos as questões de lege ferenda que estimaríamos estarem lá em forma de regra jurídica constitucional. Falta na Constituição Federal de 1988 todo e qualquer princípio segundo o qual a responsabilidade penal esteja proibida de baixar de 18 para 16 anos. Nem existe tratado (negócio jurídico de Direito das Gentes ou direito supraestatal) por força do qual ao Brasil esteja vedado baixar essa idade de responsabilidade penal.
Argumento:

[...] a própria Constituição Federal admite que encerra em seu corpo, direitos e garantias individuais, e que o rol do artigo 5o não é exaustivo.

Resposta: para se dizer que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 não é exaustivo cumpre demonstrar a verdade dessa proposição assim generalizada. O estabelecido no artigo 5º, § 2º (Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”) tem outra conceituação jurídica. Leia-se o escrito pelo professor José Afonso da Silva[6] quando explica o sentido do que sejam outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados” [7]. Mostra ele que se cuida de
(1) direitos individuais expressos, aqueles explicitamente enunciados nos incisos do art. 5º; (2) direitos individuais implícitos, aqueles que são subentendidos nas regras de garantias, como o direito à identidade pessoal, certos desdobramentos do direito à vida, o direito à atuação geral (art. 5º, II); (3) direitos individuais decorrentes do regime e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil, aqueles que não são nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêm ou podem vir a provir do regime adotado, como o direito de resistência, entre outros de difícil caracterização a priori.” [...]
                     
Percebe-se pois que, segundo esse respeitável jurista mineiro, a não explicitude consiste no próprio conteúdo de conceitos do artigo 5º, ou seja, identidade pessoal, direito à vida, direito à atuação, direito de resistência. Sim, porque identidade pessoal se vincula ao direito à segurança (artigo 5º) — sem a sua identidade a pessoa andará insegura. Essa mesma identidade se vincula a palavras do artigo 5º: inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da imagem das pessoas. Também a reprodução da imagem de qualquer um. Acresce o seguinte, reza a Constituição Federal de 1988: conceder-se-á "habeas-data": a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante.
No tocante ao direito à atuação consta no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que é livre a locomoção no território nacional. Relativamente ao direito de resistência a que alude o professor J. Afonso, está outrossim na nossa constituição federal que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, bem como o direito de fazer ou não fazer alguma coisa.
Em síntese, pois, tem-se isto — a regra jurídica constitucional do artigo 5º § 2º (“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”) só diz respeito a fatos já existentes na regra do caput. Não traz nenhum elemento de outra regra jurídica constitucional como a do artigo 228 (são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
Por outras palavras, nada impede que a idade de responsabilidade penal seja de 16 anos, alterando-se a atual norma posta no artigo 228 da Constituição Federal de 1988.
Continua a insistir o eminente procurador geral, alegando com tratados de que o Brasil seja signatário.
Argumento:
[...] direitos e garantias concernentes com os princípios da própria Constituição e de tratados internacionais firmados pelo Brasil, integram referido rol, [...]

Resposta: Ora, não existe tal norma jurídica na Carta da ONU[8], sendo certo também que essa idade penal varia de povo para povo entre vários os países.[9]
Note-se que aqui se estuda como vige a Constituição Federal de 1988, e não como as pessoas gostariam que vigesse. Essa vontade de outra vigência expressa uma situação a respeito de como deve ser a norma: é uma quaestio de lege ferenda. O que está a viger é matéria da regra jurídica produzida: cuida-se de quaestio de lege lata. Uma mudança de norma de direito há de atender ao que mais convém ao Povo, segundo os métodos da política científica. Em regime democrático isso é incumbência primacial do Poder Legislativo ao modo como vem regrado na Constituição, artigos 44-60; o modo de as Emendas mudarem a Constituição é conteúdo do artigo 60, cujo texto é:
A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. § 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.          


Quanto aos tratados, ou convenções, ou acordos, há de levar-se em conta que nenhum negócio jurídico de Direito das Gentes ou direito supraestatal, de que o Brasil é signatário, se relaciona com a idade de responsabilidade penal. Esse argumento é inane na discussão do problema jurídico ora sob discussão. Acresce a circunstância de inexistir tratado, ou convenção, proibitivos de maioridade penal aos 16 anos, afora uma única situação. Assim é que o professor Tiago Ivo Odon só alude a dois casos de Direito das Gentes ou direito supraestatal onde se faz menção ao menor de 18 anos (exceção feita à pena de morte). São: (1) a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) — também conhecida como “Pacto de San José — e (2) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU (1966). Estes negócios jurídicos de Direito das Gentes ou direito supraestatal apenas proíbem a aplicação da pena de morte a menores de dezoito anos.[10]     
III — OUTROS ARGUMENTOS DO ILUSTRE PROCURADOR GERAL.
[...] a própria Constituição Federal admite que encerra em seu corpo, direitos e garantias individuais, e que o rol do artigo 5o não é exaustivo.

 Resposta. Esse “rol” é, sim, exaustivo. O que aparentemente contém a mais são as explicitações lógicas dos conceitos dela própria, como o professor José Afonso da Silva mostrou nos trechos indicados acima.
Argumento:
[...] direitos e garantias concernentes com os princípios da própria Constituição e de tratados internacionais firmados pelo Brasil, integram referido rol, mesmo fora de sua lista.
                                             
Resposta. Cumpre insistir: nada há fora do mesmo artigo 5º, que se possa definir como sendo também do mesmo núcleo rígida da Constituição Federal de 1988 (“cláusula pétrea — ?!...). O trabalho do professor José Afonso da Silva é preciso nesses pontos.
[...] inciso IV, do parágrafo 4o, do artigo 60, [...] o dispositivo refere-se à não abolição de todo e qualquer direito ou garantia individual elencados na Constituição, não fazendo a ressalva de que precisam estar previstos no artigo 5º. (é nosso o ressaltado em itálico)

Essa ressalva, aliás, não precisava de ser feita; a razão é a mesma acima dita por nós — a não explicitude consiste no próprio conteúdo de conceitos do artigo 5º, ou seja, identidade pessoal, direito à vida, direito à atuação, direito de resistência. Sim, porque identidade pessoal se vincula ao direito à segurança (artigo 5º) — sem a sua identidade a pessoa andará insegura. Essa mesma identidade se vincula a palavras do artigo 5º: inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da imagem das pessoas. Também a reprodução da imagem de qualquer um. Acresce o seguinte, reza a Constituição Federal de 1988: conceder-se-á "habeas-data": a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante.
 No tocante ao direito à atuação consta no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que é livre a locomoção no território nacional. Relativamente ao direito de resistência a que alude o professor J. Afonso, está outrossim na nossa constituição federal que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, bem como o direito de fazer ou não fazer alguma coisa.
            Argumento:

“Não são [...] apenas os que estão no art. 5o, mas, como determina o parágrafo 2o do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pelo Texto Constitucional e outros que decorrem de implicitude inequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja extensão não se encontra em Textos Constitucionais anteriores"[11]

Resposta: consta do acima dito por nós neste escrito.
            Argumento:

[...] normas das Nações Unidas.

Resposta: não existe norma como essa em regras jurídicas da ONU>

Argumento:

[...] que a criança tenha prioridade na implementação de políticas públicas, por exemplo, e desta forma, inclusive por questão de coerência jurídico-constitucional não iria deixar ao desabrigo do artigo 60, § 4º, IV, os direitos e garantias individuais de crianças e adolescentes [...]

Resposta: é coerente neste ponto a Constituição Federal de 1988, pela mesma razão — o conteúdo do artigo 228 é estranho ao conteúdo dos artigos 5º e 60 § 4º, IV. 

Argumento:
[...] os princípios do artigo 227 encontram suporte no inciso acima transcrito e em todos os outros estabelecidos a partir do inciso XXXIX. 

Resposta: este argumento vem a ser o mesmo sobre não estar no artigo 5º o material do artigo 228.
Argumento:
[...] tal disposição se coaduna com o regime e princípios adotados na Constituição Federal. 

Resposta: é verdadeira essa proposição, mas não prova que o artigo 228 está contido no artigo 5º.
            Argumento:
 [...] no que diz respeito ao direito penal e a vedação de aplicação de certas penas aos cidadãos, vemos: "Art. 5o, XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;"

Resposta: a responsabilidade penal aos 16 anos está conforme à regra jurídica de todo o artigo 5º.
Argumento:
O artigo 228, nada mais é do que a garantia da não-responsabilização criminal da pessoa menor de 18 anos, justamente em razão da sua condição pessoal de estar em desenvolvimento físico, mental, espiritual, emocional e social, [...]
Assim, estamos diante de uma responsabilização especial, não penal, que é um direito individual do adolescente e, como tal, consubstanciado em cláusula pétrea.
Dito isto, só nos resta assegurar que este dispositivo constitucional também é cláusula pétrea, portanto, insuscetível de reforma ou supressão.

Resposta: equivoca-se o digno procurador geral de Santa Catarina por idêntica razão. Nenhum direito de adolescentes brasileiros está garantido pela norma constitucional do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Argumento:
Escreveu J.J. Gomes Canotilho que "os direitos de natureza análoga são os direitos que, embora não referidos no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, beneficiam de um regime jurídico constitucional idêntico aos destes.

Resposta: falta analogia entre direitos, liberdades e garantias do rapaz de 16 anos com o conteúdo jurídico do artigo 5º da Constituição brasileira.
            Argumento:

Concluímos afirmando que qualquer emenda tendente a abolir do texto constitucional a fixação da idade penal ou a que pretenda reduzir a idade de responsabilização penal, será flagrantemente inconstitucional e vedada expressamente pelo artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

Resposta: os argumentos desenvolvidos pelo ilustre procurador geral de S. Catarina estão vazios de juridicidade no tocante à questão da diminuição da capacidade penal, baixada de 18 para 16 anos de idade. A razão repete-se uma e outra vez, a saber, a regra jurídica do artigo 228 da Constituição Federal de 1988 é estranha aos direitos e garantias assegurados no seu cerne rígido (artigo 5º). O conteúdo da regra jurídica descrito nesse artigo não leva consigo o estabelecido no artigo 228, que é o locus juris da idade de responsabilidade penal — se sempre com 18 anos, ou se pode ser aos 16 anos.
IV — CONCLUSÕES
Ao pesquisador, ao pensador, recomenda-se usar o método indutivo experimental[12]. Com ele dá-se muito mais atenção ao mundo fático que às ideias soltas[13]. Não é que o emprego do método indutivo experimental livre o homem de todo erro, mas sim que esse método levar ao estudioso a errar menos.
Muitos são os óbices dos acertos. É razão bastante para se dar atenção especial à melhor maneira de se controlar o conhecimento. Tem-se no Brasil obra notável sobre o fundamental modo recomendado para bem se conhecer. Trata-se do livro de Pontes de Miranda O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, sobretudo quando expõe as reflexões sobre o “jeto”, descoberta original, a nosso ver preciosa, desse brasileiro[14].
Decerto esse não foi o método a que se dedicou o ilustre procurador geral de justiça, dr. Gersino Gerson Gomes Neto, em cujas reflexões faltam os cuidados com a sabedoria da inteligência[15]. Parece prevalecer uma busca apaixonada[16] de sabedoria dos instintos[17] por isso que se deixa vencer por sua própria vontade, vontade de manter (no que tange à idade de 18 anos para a responsabilidade penal) de conservar, repito, a Constituição brasileira como está. Há, pois, fundamento para se afirmar que inexiste obstáculo constitucional à alteração do artigo 218 da Constituição Federal de 1988: São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.
Ao contrário, a idade de responsabilidade penal pode iniciar-se aos 16 anos de idade.
Em síntese final, não há erro jurídico algum em se alterar o escrito no artigo 228 da Constituição Federal de 1988, baixando-se a responsabilidade penal de 18 para 16 anos.
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Bibliografia e referências.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.
————, Introdução à sociologia geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
————, Introdução à política científica. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
————, Epiküre der Weisheit. 2. Aufflage. München: Griff-Verlag, 1973 (primeira parte), “Die Weisheit des Instinkte”
————,. Epiküre der Weisheit. 2. Aufflage. München: Griff-Verlag, 1973 (segunda parte), “Die Weisheit der Intelligenz.
————, Tratado das ações. Sete tomos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970-1978.
RT número 678, abril de 1992.
————, O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972

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[1] A questão de ser ou não ser conveniente a mudança da Constituição é matéria de decisão política. Será ela acertada se atender aos princípios científicos estruturadores do processo social de adaptação “Política”. Ver Pontes de Miranda Introdução à política científica. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1983, sobretudo páginas 133-198.
[3] Ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Introdução à sociologia geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, páginas 30-43.
[4] Em outro trabalho pensamos ter mostrado recentemente que o direito à moradia, este sim, está implícito na lista do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
[11] O procurador de justiça transcreve aí parecer de Ives Gandra Martins.
[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, tomo I, páginas 67 e 288; tomo IV, 69 e seguintes, 77-122, 221 e seguintes.
[13] No tocante a responsabilidade e personalidade, mesmo autor e mesma obra, tomo IV, páginas 235-248.
[14] Ler notadamente as páginas 83-106, em que Pontes cuida de “Dado e Relacional; Universais, Essências, Espécies”.

[15] Ver Pontes de Miranda, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Epiküre der Weisheit. 2. Aufflage. München: Griff-Verlag, 1973, sobretudo o aforismo de número 14, página 13.
[16] Ver o nosso http://mozarcostadeoliveira.blogspot.com.br/, onde falamos em moralidade e corrupção. Também a primeira parte de “Paixão, Razão e Natureza”, RT número 678, abril de 1992 (ou, http://mozarcostadeoliveira.blogspot.com.br/2009/12/paixao-razao-e-natureza-investigacao_21.html).

[17]  Também de Pontes de Miranda, Epiküre der Weisheit. 2. Aufflage. München: Griff-Verlag, 1973, primeira parte, “Die Weisheit des Instinkte”, aforismos 8 (sobre a Realidade) e 37 (sobre Realidade e Fantasia), páginas 31-32 e 38-39, respectivamente.

A NECESSIDADE DE MAIS IGUALDADES SOCIAIS

A NECESSIDADE DE MAIS IGUALDADES SOCIAIS
Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), desembargador aposentado (Tribunal de Justiça de São Paulo), professor aposentado de direito (Universidade Católica de Santos, São Paulo).

A matéria intitulada acima está dividida em três capítulos: IALGO NA HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA. Este com duas partes: A) Funcionalismo “versus” marxismo (com a sociologia de Max Weber e ideias de K. Marx). II – MUDANÇA SOCIAL: A DIFERENCIAÇÃO, a incluir A) Teoria funcional da mudança social (com estrutura e equilíbrio, processo, papel, estabilidade, modelo, valor-norma, sistema e subsistema).
A seguir B) Fontes endógenas e exógenas da mudança social, C) A diferenciação, D) A mudança resulta da diferenciação.
Este vem a ser o capítulo III: TEORIA DO CONFLITO SOCIAL, em que se trazem:  A) Preâmbulo, B) Tipos de Conflito.
Por fim o último capítulo: IV — RESUMO E BREVES CONCLUSÕES, a retomar temas como regras sociológicas relevantes, governabilidade e conflitos, conservadores e reacionários.
Eia, pois.
I — INTRODUÇÃO  — ALGO NA HISTÓRIA DA SOCIOLOGIA
Na interpretação do funcionalismo mais ingênuo – de Henry James Sumner Maine[1] e de Émile Durkheim[2], por exemplo – o espectro da análise histórica revela duas fases claras da estrutura social dos grupos humanos: 1) as sociedades primitivas, pequenas, intensamente coletivas; 2) as modernas, expansivas e contratuais. A coesão do grupo é, naquelas, caracterizada pela posição de sangue, coincidente com a do prestígio. O laço moral repressivo é forte. A subjetividade é pré-convencional, resultando numa solidariedade mecânica em que é mínimo o risco de desagregação, anomia e desestruturação. O sistema assim vigente estava muito distante de ameaça de implosões.
              A análise de Max Weber[3] feita em “Economia e Sociedade” é mais opulenta. Trabalha ele com os seus “tipos ideais”, mas de tal modo trançando-os e entremeando-os que a visão histórica é mais densamente descritiva e realista. A civilização primitiva apresenta uma ordem basilar de natureza patriarcal: direção da gerontocracia. Do ponto de vista cultural prevalece o monismo sociocêntrico, com pensamento mitológico e comunicação altamente simbólica. A economia é quase exclusivamente familiar, em estado de comunismo caseiro; as trocas, quando as há, são em espécie. A consciência autônoma na ordem do aprendizado (educação), é praticamente nenhuma. São fortes as relações efetivas de dependência e lealdade (“bom filho e bom servo”).
No estágio seguinte – passagem do arcaico para o histórico – salta-se da tradição patriarcal para a tradição patrimonial. Da visão mágico-mitológica caminha-se para uma cosmovisão metafísico-religiosa. A base econômica é a do império patrimonial; temos a dominação do sultão, do senhor feudal, do régulo absolutista (príncipe, senhor da terra). Governa ele os súditos de maneira menos direta e próxima. O começo do pensamento empírico faz soltar-se mais decididamente o pensamento, que se alça aos voos metafísicos bem como às coerências de valores indiscutíveis, cujo trançado constitui a ética de convicção a que se contrapôs a ética de responsabilidade.[4] Ali atuam elites religiosas como as de sacerdotes, de profetas e mesmo de filósofos. Pequenas cidades têm alguma autossuficiência econômica, com uma economia “natural” que se abre às perspectivas do mercado econômico. Nesta fase esboçam- se os primeiros gestos do capitalismo político. No mundo educacional dá-se o surto de universidades e igrejas.
 As relações de lealdade pessoal ganham em abstração até com avanços de autonomia de consciência. A figura típica é a do “súdito obediente”. Firma-se acentuadamente a ética de responsabilidade — pensam-se os meios e a sua adequação técnica e moral em relação aos fins e às consequências de cada ação social. Medem-se forças, equacionam-se maduramente as circunstâncias no desempenho. Assume-se a responsabilidade pelos resultados, além da paz de consciência decorrente (na ética de convicção) da coerência de princípios e de compromissos assumidos ou com a decisão, ou a luta.
Na visão weberiana o terceiro estágio da civilização é a modernidade, com a diminuição crescente do despotismo em vários níveis: político, cultural, econômico e educacional. Caracteriza-se a política como relação social pelas regras do “jogo do poder” na organização do grupo humano e na distribuição dos focos de dominação com ou sem alianças. Mas essa dominação adquire dimensão de legalidade de outras modalidades, como plebiscito, conselhos, parlamentos e burocracia.
Na instância cultural surge maior aproximação do pensamento com a consulta aos fatos; é o controle do pensamento pela experiencialidade, ou seja, pela empiria.
Os homens são “cidadãos”, governados agora por políticos profissionais. Prevalece decisivamente a ética de responsabilidade, o que deixa ver o amadurecimento ético-cultural. O conhecimento adquire maior autonomia. A secularização da análise antropológica desmitifica a história em novo passo de “iluminismo”, agora à cata de especificidade e demonstrações sobre o destino do homem — desponta o “desencantamento do mundo” [5]. 
A diferenciação semiótica conduz a mais precisão do pensamento e da comunicação; a linguagem das ciências particulares ganha especificidade e confere-lhes mais exatidão, resultando isso em mais desenvoltura da pesquisa, que se desprende do dogmatismo da tradição.
O teocentrismo distancia-se das perspectivas humanas quanto à concepção política e à idealização do mundo. É o tempo do intelectual liberto, da emancipação da inteligência, liberta esta de imposições místicas.
 No plano econômico é a vez da economia de mercado na qual todos se apresentam como “cidadãos”, “seres livres” aptos para contratar. No campo educacional pululam as escolas públicas. Delineia-se o tipo autônomo de consciência mormente em face da autoridade religiosa e da ética tradicional. Os seres humanos recebem a cunhagem, atual, de “cidadão do mundo”.
O direito era irracional e formal na “ética mágica”, irracional e material na “ética moral”, racional e material na ética “de convicção”; torna-se agora racional e formal. É agora lógico abstrato, dotado de principiologia jurídica própria da “ética de responsabilidade”. É também o tempo da assunção de riscos na conexão meios-fins. Aprofunda-se, na democracia liberal, a distinção entre o direito público e o direito privado. Isto depois de já ter deixado para trás, como realização das fases anteriores, o discrime entre direito civil e penal, e a distinção entre direito sagrado e direito secular.
A modernidade é, portanto de “feição contratual”, com aprofundamento da divisão do trabalho. Para a ótica funcionalista a problemática da mudança social, já registrada pela História, planteia-se a lograr o equilíbrio entre persistência de identidade de certo sistema e a sua diferenciação no tempo e no espaço. A perda de identidade redunda em crise, que há de ser superada pelo fato mesmo de ser desfiguramento da identidade sistêmica.
Fica bem clara a questão de controle das mudanças e de disciplinação dos conflitos, condição indispensável para o sistema não esboroar. E o funcionalismo clássico invoca a regulamentação do direito como instrumento indispensável à conservação do sistema submetido a mudanças, a fim de que não seja ele destruído.
A sociedade moderna complexifica-se com abundância de diferenças funcionais. Evidenciam-se relações de igualdade maior entre ordens parciais dissimilares. Os subsistemas multiplicam-se como que a obedecer ao princípio físico do determinismo e à lei biológica da variabilidade. É versão sociológica da lei da integração e dilatação dos círculos sociais segundo Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda[6]. O conhecimento, a despeito da sua relatividade, sobretudo no campo mesmo da sociologia, tem papel relevante com reflexos da multifária aplicação no campo da tecnologia – esta por sua vez sob o impacto da ideologia
A vantagem metodológica que M. Weber leva sobre o funcionalismo está na circunstância de ele, como Karl Marx[7], ter sido mais penetrante e crítico em relação ao problema central do conflito, dentro dos sistemas sociais da modernidade – houve-os sempre, em épocas precedentes, mas acentuaram-se sobretudo depois da primeira revolução industrial[8].
Os funcionalistas anteriores parecem que quase preferem ignorar o conflito. Adotam posição idealístico-voluntarista, como que para desfazer-se intelectualmente de um elemento indesejável. Relativizam este elemento, crendo inclusive na neutralidade do estudioso e do governante. Quando não contornável o dito elemento indesejável, pensam ser ele um assunto de repressão. Embora vendo as várias das iterações sociais – com que se enriqueceu a sociologia —, o velho funcionalismo deixou de desvendar a fundo a questão da legitimidade, com a qual determinado sistema só tem oportunidade real de desenvolver-se segundo as concepções e crenças dos seus próprios elementos em ritmo de variação dinâmica.
Sua tendência conservadora vai longe demais para conseguir criar esquema teórico básico capaz de traçar agenda de soluções para o problema da mudança. E mudança tanto mais rápida quanto impulsionada pela instabilidade das pressões econômicas e pelo jogo violento do poder.
Examina em suma as redações sociais de cima para baixo numa perspectiva hierarquizante, em vez de compreendê-la por dentro e por fora da lógica estatal (“lógica paraestatal”). Ora, a vantagem maior de M. Weber está no fato de ele ter quase que se adiantado às próprias críticas de neomarxismo, o “marxismo ocidental” atual, ao enfrentar o problema ético da legitimidade[9]. Buscou Max Weber encher de realismo histórico a análise da crise na sua etiologia interior, ou seja, a tomada de consciência da crise da sociedade e da crise simultânea do Estado no esgotamento de capacitação para dar respostas a demandas. O notável autor alemão não chegou, contudo, à superação do liberalismo agudo. Entregou-se à busca desesperada de solução para o problema do dilema aparentemente conflituoso de socialismo-capitalismo. 
Seja como for, Weber elevou a análise sistêmico-funcionalista a grau assaz profundo de compreensão dos problemas sociais, até com o fornecimento de paradigmas ainda válidos para o estudo do conflito e da crise com que se debate o Ocidente.
 A visão atual dos estudos sociológicos é tecida das duas visões, ambas críticas: o funcionalismo crítico de M. Weber e a crítica neomarxista (esta com evidente ênfase na transformação a caminho de crescente socialização da economia e da cultura, mas já em ambiente de democracia[10]. É por essas vertentes que perambula o pensamento ocidental à busca de refrigério para a seca da crise na polarização “legitimidade-governabilidade”.
A) Funcionalismo “versus” marxismo
A sociologia de Max Weber. O funcionalismo arrima-se sobretudo nas ideias expostas na sociologia de Max Weber. Para ele, a compreensão das relações sociais consiste em se captar o conteúdo interior, subjetivo da ação, sem atenção aos seus nexos envolventes, exteriores. Essa compreensão da ação humana leva à captação do seu sentido subjetivo. Quando o curso da ação se torna observável deste modo, é o caso de compreensão imediata, mas será de cunho explicativo se não se detém no sentido aparente, e sim aos motivos subjacentes da ação. Acresce que cada indivíduo exerce uma função na sociedade, cuja má execução denota algo de desregramento. Nisto Weber acompanha as ideias de Émile Durkheim — as características da ação humana são a exterioridade e a coercibilidade. O fato social é exterior por isso que ele existe antes do próprio indivíduo; também é coercitivo porque a sociedade dita regra sem prévio consentimento dos indivíduos.
Ideias de K. Marx. Para Marx, as desigualdades sociais são provocadas pelas relações de produção do sistema capitalista, sistema divide os homens em proprietários dos meios de produção e não-proprietários deles, de modo que as relações entre homens se caracterizam por sistemas de oposição, antagonismo, exploração e complementaridade entre classes. Com isso a história do homem vem a ser a história da luta de classes, a história do conflito constante entre interesses opostos, conflito muita vez calado.
Os antagonismos entre as classes subjazem a todas relações sociais, em todos os tempos, a partir do surgimento da propriedade privada. Foi a organização da classe trabalhadora que veio a permitir a sua tomada de consciência e bem assim a sua mobilização para a atuação política.
A pesquisa e a práxis política labutam por aprofundar o questionamento dos valores, e para compreender os anseios e os movimentos complexos da sociedade nos dias de hoje. Vem sendo assim nos meios acadêmicos dos países desenvolvidos de capitalismo avançado (este capitalismo sofre alguma intervenção do Estado Social) vem sendo assim também nos pesquisadores dos Povos do Terceiro Mundo, sob forte influência do capitalismo internacional. Tem-se hoje a convicção teórica assaz desenvolvida a respeito de a governabilidade ser possível desde que haja a simultânea percepção do sentido da lógica das consciências da crise. Pela constante comunicação entre pensadores, governantes e governados, e pela crescente participação setorizada de todo o corpo social, há esperança de se mudar o necessário e de se manter o indispensável.
A expansão transnacional da economia (EUA à frente) vem causando destruições. O “Consenso de Washington”[11] tenta manter atuantes os efeitos do neoliberalismo. Falta-lhe, porém, ocupar-se de equipar pessoas com os meios de lhe serem atendidas as necessidades fundamentais: abrigo, comida, roupa, emprego, alfabetização, treinamento profissional, médico, hospital, remédio, proventos melhores na aposentadoria, lazer estimulante. Ao crescimento econômico de países mais ricos corresponde maior penúria dos já empobrecidos; nestes a distribuição de renda anda sempre desequilibrada. O poder político das grandes empresas, sobretudo das norte-americanas, determina boa parte da orientação da mídia, eficiente formadora de opinião nos Estados Unidos. O pensamento desse povo é escassamente solidário nas estruturações sociais.
O escopo deste nosso trabalho é trazer reflexões sobre os temas ligados ao conflito social e às mudanças reclamadas pela pulsação interior de milhões de pobres mundo afora. É ingente a tarefa, e urgentíssima, de se traçarem matrizes da governabilidade. A Constituição Federal tem de determinar à forma social normas especiais, guiada pelas regras jurídicas do Direito das Gentes. Cumpre, pois, lograr-se princípio organizacional básico que viabilize a continuação da vida levada em comum e que lhe dê medidas de alcance prático sobre as mudanças. Sem estas, dizem estudiosos de vulto, chega-se à gravidade dos empecilhos importantes, do impasse, do caos.
Observaram-se nos EUA 90% de aprovação a Bush no conflito contra o Afeganistão[12], isto apesar da prepotência dele àquele tempo sobre a própria ONU para mover guerra ao Iraque. Entretanto, prevalecia o interesse pelo petróleo do Mar Cáspio. Por mais de uma vez assistiu-se também à prepotência de Israel em face da ONU no intuito de matar mais e mais palestinos. O argumento foi o de legítima defesa prévia. Eram conflitos claros, flagrantes, a que as pessoas acabam por acostumar-se como se tudo fora impossível de prevenir, ou remediar, qualquer que seja o meio legítimo para esse fim. Note-se como esse conflito prossegue no século XXI.[13]
II – MUDANÇA SOCIAL: A DIFERENCIAÇÃO
A evolução de certa estrutura social dá-se, na concepção de Talcott Parsons[14], pela  diferenciação, com distintos modelos institucionais a sucederem-se. Para se penetrar a teoria parsoniana é de mister assentarem-se alguns dos seus conceitos fundamentais.

A) Teoria funcional da mudança social. Os conceitos fundamentais na análise desse fenômeno são: estrutura, equilíbrio, processo, papel-coletividade, modelo, valor-norma e estabilidade.
Estrutura. É o conjunto de elementos mais ou menos estáveis, susceptível de receberem alterações em fatores que se lhe aglutinam. Há um fundo estático de partes essenciais que ficam; há um complemento dinâmico, composto de elementos naturais que se sucedem. Assim, o quanto se passa com um corpo vivo, na biologia, é acontecimento natural que se repete com mais complexidade na família, numa pequena comunidade territorial (seita religiosa, associação moral etc.), no Município, no Estado-membro, na União, no Orbe.
Equilíbrio. É a situação de constância suportável de certa estrutura. Vem a ser um estado de alguma permanência no seu sistema de trocas. É observável intrassistematica e extrassistematicamente pela identidade de energias no seu interior, embora o sistema em questão continue submetido a incentivos interiores e a solicitações exteriores, com possível disrupção, desagregamento, mudanças.
Processo. É a dialética factual, real-empírica, um caminhar consistente na dinâmica interativa entre elementos perturbadores da simetria, tendentes a alterar a estrutura e as unidades estruturais empenhadas em manter a identidade do sistema. Temos, portanto, dois polos ontológicos inseparáveis: a estrutura e o processo. A estrutura mantém a realidade empírica de equilíbrio, estabilidade, simetria interior, conservantismo. Já o processo conduz a alguma ruptura, desestabilização, diferenciação intrínseca; produz evolução, pois.
Papel-coletividade. Nos universos sociais, a menor unidade é o sistema. Corresponde biologica e aritmeticamente ao indivíduo.
Papel tem, porém, um sentido de deslocamento. Duplo sentido, aliás: (a) é a orientação que o agente imprime à via social e (b) é a modalidade de reação que ele é capaz de apresentar à ação de outros papéis. “Papel” é, portanto, ao mesmo tempo a orientação ativa de alguém e a modalidade passiva dele. Em nível superior de complexidade, ou seja, acima dos papéis, estão as coletividades. Elas são, portanto, unidades sociais mais complexas na interação social; para muitos a interação só é vista se for em comum com as pessoas relacionadas com o interessado.
Note-se a importância teórica da distinção entre papel e coletividades inclusive para se discutirem, as tentativas de superação das crises democráticas de governabilidade, mesmo em visão neomarxista (a visão de Klaus Offe[15], por exemplo). Os papéis, se isolados, pouco têm a fazer na consecução de pressão social. Podem muito mais as coletividades (partidos, associações, parlamentos etc.).
Estabilidade é um estado de algum equilíbrio exigido pela natureza. Tem pressupostos essenciais: 1) para ser estável, todo e qualquer modelo normativo (uma Constituição Federal, por exemplo) tem de ser constante no fluxo do tempo — mudar pouco, ser durável; 2) para tanto é indispensável a adequação desse modelo no qual ser e dever-ser não se distanciem demais, de tal modo que a atuação dos papéis e das coletividades tenham ações previsíveis; 3) é de mister que o dito “modelo” seja ao máximo institucionalizado pela via de consenso (compreensão e aceitação), de tal sorte que o ator se veja no modelo como sujeito dotado de pautas racionais de comportamento; 4) o modelo normativo precisa de ser capaz de integrar os papéis e as coletividades interiores, harmonizando complexidades, coordenando diversidades, integrando a coexistência de diferenças, assimilando o pluralismo.
Modelo é a figura resultante da descrição das interações e das expectativas de interações no relacionamento ativo-passivo dos papéis, entre si e com as coletividades. Como uma parte dessas relações empíricas é esperada, mas nem sempre realizada, segue-se que o modelo é em parte normativo (dever-ser) e em parte é puramente descritivo (ser). Ou seja, algumas interações esperam-se como adequadas ao equilíbrio dinâmico, relativo, do sistema. Como elas podem não acontecer, mas são necessários ao funcionamento do sistema, vislumbra-se a legitimidade da sanção. Esta sanção vem a ser, pois, a correção, ou tentativa de correção de uma microrrotura determinada, por causa da sua disfuncionalidade na vida do sistema.
Valor-norma é outro binômio com que se há de trabalhar na análise de estruturas e de mudanças. O valor é um padrão regulador de alcance mais geral para determinado sistema, independentemente das situações individualizantes de cada papel. Já a norma é um padrão regulador de determinados papéis, ou grupos de papéis, ou coletividades, deferindo-lhes as ações esperadas dentro do sistema. O conjunto das normas subordina-se, portanto, à abrangência mais ampla e profunda dos valores, cujo padrão normativo é mais complexo e menos analítico na sua explicitude.
Sistema e subsistema: a definição de papéis, de coletividades e de sistemas é relativa. Diz respeito ao grupo de funções sociais, que se está a analisar. Mesmo um papel isoladamente considerado, se examinado na sua estruturação interna, mostrará “subunidades”. E o sistema integral, mirado na sua posição relativamente ao ambiente exterior, poderá exigir que se conceba apenas como subsistema dento de um sistema mais amplo.
              B) Fontes endógenas e exógenas da mudança social
O equilíbrio de um sistema social obedece à lei da inércia. Ele resiste às modificações, de modo que, para bem observarmos a arrancada das mudanças, convém identificar os elementos “perturbadores” do processo que a orienta. Ora, a mudança intrínseca dos papéis tem causação exógena; consubstancia-se na pressão exercida sobretudo pelas estâncias culturais de formação social. Trata-se dos processos sociais de adaptação, os de natureza mais espiritual que, vista a estrutura do ser humano em linha vertical alcançam níveis mais profundos de consciência (Religião, Moral, Arte). Essa causação tem pelo menos quatro significados. O primeiro: a institucionalização de valores somente consegue ser efetiva nos resultados quando houver a concomitante atividade de internalizá-los mediante a conscientização. Segundo: é de importância básica para a organização estatal a abertura de espaço para integração espontânea de ideais culturais, deixando-se campo livre à produção de valores religiosos, morais, estéticos e do saber. Terceiro: as personalidades individuais mudam algo na sua estrutura em função das instituições normativas, sejam elas as mais formais (como o Direito, a política oficial, o plano econômico do governo) sejam as mais espontâneas — com as vivências religiosas, as experiências éticas e as concepções estéticas e científicas. Em quarto lugar, convém pensar em que a estabilidade, conjugada com a adequação social das instituições (acerto, verdade intrínseca, justiça material), contribui muito para a estabilidade psicoemocional dos papéis, tornando mais calculável a sua conduta em face dos valores e das normas que traçam a fisionomia do sistema.
Mas, temos de contar igualmente com variáveis independentes. Essas variáveis são capazes de brotar mais ou menos isoladas dentro do sistema social, e vêm dotadas de potencial mudancista. É o caso, por exemplo, do surgimento de lideranças carismáticas. Liderança carismática pode impulsionar mudanças “por saltos”, de modo menos previsível.
Talcott Parsons ocupa-se mais da ordinariedade das mudanças, numa explicação analítica que lhe parece suficiente. Para ele as instituições sociais, reduzidas à sua lógica formal, têm ainda outra variável independente —a diferenciação. É uma variável independente, típica, importante para a compreensão do fenômeno da mudança social.
C) A diferenciação
Determinado papel percebe em dado momento que o sistema lhe é parco em capacidade de atendimento às suas necessidades. Emancipado, desprende-se então do sistema. Busca outro mais vasto, em que se integrar. Este é o esquematicamente o fenômeno da diferenciação, encontrável em qualquer sistema. Explica a mudança social, ao menos como um dos seus fatores, importante e até corriqueiro. De modo que, a insuficiência de recursos (motivacionais, ou materiais) para a consecução de metas pessoais dos papéis constitutivos de certo sistema, excita a experiência pessoal da frustração específica. Amostra: dentro de certa família, ou de pequena comunidade interiorana, ou de pequena empresa, o ator social sente-se adulto, independente, desadaptado, tocantemente às suas esperanças e planos. Desprende-se então e parte ao encalço de mais ampla oportunidade, em organização social dotada de maior complexidade, e riqueza de recursos. Tem-se aí uma micro-ruptura do anterior sistema. Desprende-se um dos seus papéis, ao encalço de integração diferente: outra estrutura, novas instituições, outros valores e normas, processos culturais diversificados. Dilata-se o círculo social. Por isso que o papel divergente se muda mas leva consigo resquícios inapagáveis da linhagem de origem.
Quando esse processo de diferenciação se acentua, o sistema perde os talentos emancipados. O aguçamento do fenômeno tende a fazer obsoleto o sistema anterior. Esmaece ele nas suas potencialidades. Caminha para o esgotamento. Mas a causação exógena — da opinião pública, por exemplo — pode determinar a sua reorganização intrínseca. Dá-se então um esforço, por vezes bem-sucedido, de mudança do sistema. Se o conseguir, sobreviverá modificado, alterado, com algo de novo na sua estrutura. As formas de sua participação social alteram-se. É o caso, por exemplo, do novo papel da mulher, da modernização dos meios de produção, de alteração dos hábitos de consumo, de alteração de mentalidades (“Weltanschaungen”) e de interesses, dos tipos de jogo nas bolsas etc. A integração dessas novas formas, nos papéis remanescentes, é possível mediante imposição de novas instituições formais, adequadas à nova instituição, que se esboça. 
             D) A mudança resulta da diferenciação
A governabilidade ou controle do fenômeno de diferenciação intensamente produzida depende da criação de oportunidades, de mecanismos de produção social: multiplicação de recursos, de padrões axiológicos e normativos adequados, de benefícios motivacionais e materiais, que satisfaçam aos papéis e às coletividades interiores. Para tanto é indispensável o talento criador de novas modalidades de integração social. Recursos diferenciados, outras formas de integração social. Recursos diferenciados, outras formas de produção (econômica, política e cultural), instituições modernizadas há de acolher os subsistemas dentro do sistema, que se expande. Isto implica desconcentração de poderes e de recursos para se alimentarem as novas demandas. Como se vê, a integração crescente dos círculos sociais acarreta esforço fecundo e não dispensável de “democratização” de recursos naturais. Cumpre, ao mesmo tempo em forcejar acertadamente a participação do Povo na produção e na fruição dos benefícios do trabalho social.
Essa perspectiva de expansão do sistema social, em ritmo de diferenciação, aponta para a necessidade de se diminuírem os desníveis de fortuna, de sorte, de destino — traçados pela história do individualismo possessivo, desde as sociedades primitivas marcadas pelo patriarcalismo até os nossos dias, carregados pela herança desigualizantes dos mais fortes (mais fortes inclusive no egocentrismo possessivo). 
Não se pense aqui em tiradas moralizantes. A análise da ambiguidade encontradiça na dinâmica entre estrutura e processo, levada a cabo nos resultados e exigências da diferenciação sistêmica, indica a necessidade (entre outras medidas necessárias), da diminuição gradativa (e enérgica) das desigualdades sociais que atentam contra o mínimo de expectativas humanas em termos materiais e culturais.
Impõe-se algum sacrifício de vantagens excessivas do ponto de vista das necessidades de papéis e de coletividades; não para extingui-las, mas para deslocá-las — alocação de recursos sociais, em benefício do sistema, para que possa ele subsistir, no tempo e no espaço. Nova ordem, superior em mais complexa, pede esse tipo de reabsorção de energias sociais, dos mais variados níveis ou instâncias de formação social, dos mais variados níveis ou instâncias de formação social.
Resulta essa nova articulação do fenômeno mesmo da mudança social, normal, regular, determinado pelo fenômeno inevitável do alargamento do espaço social.
A intervenção da inteligência, a tomada de consciência da crise formada, a abertura política disposta à crítica de novas formas e de novos valores, em diálogo rítmico com as diferenciações e consequentes alterações das redes estruturais — são posturas responsáveis de maturidade exigidas pela história contemporânea. Serve a intervenção consciente ao menos para diminuir em grau ótimo as consequências do conflito, realidade social que a leitura funcionalista não enxerga com a mesma clareza que a colaboração neomarxista a viu.
É certo, portanto, que o cálculo do dissenso tolerável é cálculo da capacidade de resistência do tecido social — papéis-coletividades, estrutura-processo, valores-normas, sistemas e subsistemas, ação intrínseca e ação extrínseca. Montada a equação (ou inequação) sistêmica de oportunidades funcionais da sociedade, as soluções haverão de dar-se em três variáveis, simultâneas e relevantes: segurança para as liberdades fundamentais, expansão democrática e progresso social com metas nítidas e métodos explícitos (ética de responsabilidade).
São pressupostos e, ao mesmo tempo, programa de atividade incessante — porque contínua é a diferenciação social — de reestruturação social (organizada e consciente). Mudança e recuperação de energias, rupturas constantes e remodelação de formas integrativas — novas, diferenciadas e não necessariamente cercadas pela histeria destrutiva e medrosa do conservantismo. Novos modelos não significam, sempre, rupturas totais e início “ab ovo”, mas em readaptações profundas: crise de identidade, mas capacitação para conservar o mínimo preservável exigido pelo não-mutilamento da feição histórica de um Povo.
Modelo normativo novo é renovação de modelo, com a adoção de novas formas integrativas justamente em função das aquisições históricas. Vamos a um exemplo: crescimento em igualdades não destrói a conquista das liberdades fundamentais (entre as quais a liberdade omnímoda de iniciativa privada e de ganhos individuais praticamente ilimitados não são elementos imprescindíveis). Se não forem encontradas formas intermediárias, energicamente eficazes, (eficientes e capazes), a subida de temperatura dos conflitos e a generalização da crise poderão determinar um “salto” (“natura facit saltus”!...) para uma estrutura social quase que inteiramente diferente — justamente aquela que mais dói aos reacionários e aos arraigados espíritos conservadores. 
           Lembrança histórica é o das explosões populares. Levaram a dolorosos fechamentos sociais de esquerda, à ablação de conquistas democráticas e de muitas liberdades fundamentais. Ora, em todo o mundo assistimos a cenas desse tipo, mesmo em povos dos mais tradicionais e dominados por autocrismo conservador (China antes de 1.949, Cuba, alguns países árabes).
A nossa Constituição Federal de 1988, após a diferenciação eleitoral de 1.985 (inclusive com algo da variável independente do carisma de Tancredo Neves), tinha de conter valores globais diferenciados dos anteriores, mormente no que diz respeito à participação popular na vivência democrática e, sobretudo em normas decisivas em direção ao crescimento social. Havia de ser assim em termos de direito ao emprego produtivo, à subsistência real, à assistência médico-odontológica-hospitalar de carentes, ao acesso efetivo à educação para todos os economicamente incapazes, ao acesso à criatividade pessoal.
Essa guinada importaria em nova direção da economia, que não podia deixar de ser planificada a curto, médio e longo prazo com estratégias assumidas de realizabilidade efetiva, O planejamento havia de ser claramente exposto e discutido. Os mais privilegiados tinham, já então, de ser persuadidos a fazerem concessões generosas.
Cumpre sobrevirem as técnicas de execução eficiente. A respeito do Brasil nota-se que é sabido estarem na América Latina os países mais desiguais do mundo. Tal o que consta no livro Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos” (Editora Unesp), livro este organizado pela professora Marta Arretche, titular do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). [16]
Nessa mesma publicação consta mais o seguinte:
[...] o pico da desigualdade de renda no Brasil ocorreu em 1989, final do governo Sarney, quando o piso da renda dos 5% mais ricos correspondia a 79 vezes o teto da renda dos 5% mais pobres. O estudo mostrou que as desigualdades de renda vêm caindo, principalmente entre os 90% mais pobres, e as políticas públicas têm desempenhado papel central nessa redução.[17]
    
Numa palavra, há que submeter-se a revisão profunda o atual capitalismo brasileiro. A não ser assim, o sistema perde capacidade de resposta ao estímulo da diferenciação — endógenas e exógenas. É inevitável a sobrecarga na interioridade do sistema. Eclode na certa o conflito, ao menos na forma de ressentimento. Pode ocorrer o pior, que é o esgarçamento continuado do sistema por perda do ensejo de adaptação eficaz. Daí a importância da noção de conflito.
III – TEORIA DO CONFLITO SOCIAL
 A) Preâmbulo
Aos poucos vai diminuindo o abismo, ao menos aparente, que separava funcionalistas e marxistas. Parece que hoje assistimos a certo idílio entre as duas interpretações da realidade sociológica: aos marxistas de hoje no Ocidente os mais conservadores adoçam o termo com um “neo”; os neomarxistas correspondem: já não é tão crua a acusação de conservador a muitos sociólogos funcionalistas: são apenas “neofuncionalistas”. A observação mostra uma pequena diminuição do grau de relatividade do conhecimento sociológico: são dados passos eficazes de aproximação em direção a realidade ontológica, ao material complexo do trançado da vida em comum, filtrada pela seletividade do imaginário móvel, no qual, todavia o conhecimento mais objetivo não se resigna ao afogamento, ao desespero, ao ceticismo. A sociologia do direito continua a trabalhar entrementes com a da dogmática jurídica. Pesquisa os elementos disfuncionais do direito, como fato social altamente sujeito às influências subtis da política: as distorções da força, por trás da aparência do justo. Um dos compartimentos dessa investigação é a crítica à teoria do direito. No que esta minimiza importante componente da realidade (a complexidade do conflito), há que lhe ressaltar a omissão, a indiferença ao social. O resultado jurídico-sistemático advém do esforço vencedor bem-sucedido, que geralmente ignora o conflito de classes (dentro delas e entre elas). Isto ocorre mormente quando as classes sociais foram hierarquizadas durante o perpassar da História, num e noutro agrupamento humano, no tempo e no espaço; porque é dessa inequação ou injustiça material que as sistemáticas brotaram, de modo especial no Ocidente, depois das revoluções industriais.
A vivência estatal, como também a experiência social incessante, não se esgota no conteúdo extraível do sistema jurídico. A maioria mesma dos indivíduos ignora a produção oficial de normas de convivência. É obscura a legitimidade de muita lei. Cabe também à sociologia do direito efetuar constatações de ausência de correspondência entre incidência e aplicação das normas jurídicas – entre “vigência” e “eficácia”, como soem expressar-se sociólogos e filósofos do direito.
Com maioria de razão toca-lhe examinar a legitimidade da regra jurídica: se a expressão dela, no seu conteúdo, atende à necessidade do equilíbrio do corpo social. Este é campo próprio da política científica, uma especialização da sociologia. Fundada nesse conhecimento, a ação política erra menos.
Cumpre testar os confrontos valorativos e os procedimentos postos a serviço da sociologia jurídica. Muitos deles são energicamente efetivos, mas não se formalizaram na dogmática jurídica. Constituem uma espécie de “lógica paraestatal do direito”. Os “direitos humanos” são quase sempre direitos a se exercitarem em face do Estado. Ora, o próprio Estado produz as normas oficiais do direito. O Estado mesmo aplica o direito por ele objetivado, para realizá-lo empiricamente — procedimento oficial de alcançar a “eficácia” da ordem jurídica. Indispensável logo, e ao mesmo tempo fecunda, é a crítica para que não se perca a consciência de crises. Estas se preparam no interior dos sistemas sociais (subsistemas) e ameaçam a própria estrutura do sistema global. Não é a crítica um empreendimento iconoclasta. Não visa à demolição do direito como fato. Sua função há de ser a renovada tomada de consciência de disfunções, de abertura de alternativas. Há de apontar soluções para as crises que venham abater-se sobre o direito vigente em decorrência da irracionalidade dos padrões de dominação. Esta é de institucionalização que se impôs. E resiste a diferenciações, a mudanças, ao reequilíbrio das relações políticas e econômicas.
Acentua Ralf Gustav Dahrendorff[18], um não neomarxista, ser este um fenômeno destrutivo: tentar ignorarem-se os conflitos. Corresponde, em nível sociológico, ao fato psicológico de se reprimirem os conflitos emocionais individuais. Geram neuroses e explosões nos papéis e nas coletividades. Um dos germes da relatividade do conhecimento sociológico consiste precisamente em a força das determinantes exógenas canalizarem parte da própria seletividade dos temas que se levam à tona da consciência. Mais árduo então o evitamento dos conflitos e mais lento o progresso simplesmente “funcional” dos sistemas sociais. Esperável, pois, claro está, a permanência conservantista de métodos, paradigmas, classificações e “tipos-ideais”. Bem, pois o perigo é a angústia de um “eterno retorno”: refugar as ideias e “soluções” encontradas para as diferenciações, sufocar os ímpetos de mudanças sociais. 
Nos centros de estudo dos países industrialmente avançados (em que indivíduos e grupos alcançaram grau elevado de bem-estar), a preferência é pela versão funcionalista. Acentua-se o elemento consensual com perda efetiva de visão de outro elemento não menos relevante e poderoso da realidade: a dinâmica do conflito. Não se conhece na História nenhum círculo social isento de conflito, de tal jeito que este não se pode interpretar como uma anomalia da vida. É, antes, como um fato natural, propulsor intrínseco, dimensão conatural da vida em comum, qualquer que seja o grupo humano de que se trate.
B) Tipos de Conflito
Cumpre destacar os determinantes estruturais do conflito. Vem a propósito salientar como é gerado no íntimo da sociedade. Quadra analisar as suas dimensões, as suas espécies e a sua forma de canalização (com solução ou com pseudosolução).
Conflito, em sentido amplo, é toda oposição entre os elementos de um grupo sob a forma de luta, ainda que mais ou menos inconsciente. Ele é social quando os elementos em luta são grupos da sociedade (“coletividades”, na linguagem de T. Parsons). Agora, conflito social em sentido estrito é aquele gerado dentro de uma sociedade juridicamente organizada, em cujos polos estão categorias sociais verticalmente hierarquizadas, em luta. Conflito em sentido estrito há também entre sociedades internacionais.
No conflito propriamente dito a luta não ocorre entre iguais postos em linha horizontal. Tampouco quando os grupos contendores são entre si relacionados por continência (digamos, por exemplo, o Brasil com o FMI). O problema do conflito social em sentido estrito surge quando entre os grupos se configura a dominação hierárquica, numa relação fática de subordinação. Exemplos: pais – filhos, empregados – patrões, governo – oposição (nos governos autoritários). Nos anos 80 temos EUA – Nicarágua, URSS – Afeganistão. No novo milênio temos EUA- Alqaeda, EUA-Iraque, Mundo não xiita—Estado Islâmico (o mais recente).[19] É difícil o conceito analítico, descritivo, crítico, objetivo — de “classe”. É fundamental, para a análise e classificação dos conflitos, evitarem-se as tiradas ideologizantes, as generalizações estéreis, os unilateralismos simplistas de divisão de classes. Tal é o caso, por exemplo, de chavões acríticos do tipo “o motor da história é a luta de classes”.
Nos conflitos sociais em sentido estrito o próprio conceito de classe é relativo. Há que se trabalhar com ele em tomada de consciência de se estar lidando com um “tipo ideal”. Isto, posto seja mais ou menos denso de alguns elementos característicos, não esgota todo o potencial dos conflitos historicamente importantes e decisivos. É que empiricamente nem todas as sociedades apresentam os mesmos tipos de conflito. Nem pesa em todas elas, para a dinâmica das mudanças sociais, conflitos de mesma natureza. 
               Estruturas diferentes podem dar surgimento a conflitos diversamente importantes. Todavia, os conflitos mais “gerais”, mais encontradiços, estatisticamente mais determinantes, soem ter o conteúdo de relações de poder e relações de produção. Ou seja, os conflitos mais comuns são os do subsistema político e os do subsistema econômico. Na Política e na Economia é onde encontramos as relações mais conflituosas.
Diante do fenômeno, duas leituras do mesmo fato contrapõem-se em paradigmas de interpretação: o funcionalismo frisa o aspecto consensual, o marxismo o conteúdo da fricção social. A seletividade preferencial do elemento consensual (pacto, integração) é pelo menos tão velha quanto Roussel.

IV — RESUMO E BREVES CONCLUSÕES

Regras sociológicas relevantes. No correr da história verifica-se que o despotismo vai a pouco e pouco diminuindo. É, pois, verdadeira a tese de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda[20] a respeito da “diminuição do quantum despótico”, transitório por causa do outro princípio — o da estabilidade crescente[21]. Também o aumento do conhecimento científico desenvolve a estabilidade porque a crença, se for só simbólica, frequentemente causa temores infundados e assim desestabiliza.
Funcionam igualmente outras duas leis: a da integração e a da dilatação dos círculos sociais; com elas a harmonia ou estabilidade prospera mais rapidamente. É coisa diferente da extinção dos conflitos; seguem estes na sua própria existência “enquanto o homem for homem”.  Segundo o funcionalismo tais conflitos resolvem-se por força da própria natureza. Já o marxismo traça acentuadamente o caráter antagônico da convivência. 
Governabilidade e conflitos. O Estado é criação do Povo (sociedade), não o “senhor” dele. O pensamento e o sentimento, livres ambos, precisam de regras jurídicas a garantirem as liberdades fundamentais (como vigem hoje na Constituição Federal de 1988). Somente com elas ocorre a governabilidade “sustentável”, a saber, suportável pelo modo de ser da natureza humana. Para a realização dela muitos conflitos surgem; entre os processos sociais de adaptação mais diretamente ligados à mitigação dos conflitos talvez sejam a religião, a moral, as artes e o Direito cuja característica maior consiste no fato de a incidência das suas normas estar fora de dependência da vontade daqueles a que se dirigem, assim como porque vige acima do direito estatal o Direito das Gentes ou direito supraestatal.
A lentidão nas mudanças sociais é natural. A “lei da inércia” provoca a lentidão das mudanças sociais, de modo que só em processus, mui paulatinamente se logra algum grau de equilíbrio no interior dos Povos e nas relações entre os Povos — a harmonia, a paz.  De outro lado, as individualidades de cada povo variam consideravelmente; esta realidade leva às diferenciações temporais no tocante ao modo de as mudanças de efetivarem numa e noutra parte da Terra em tempos distintos. Seria errônea, portanto, a generalização feita sem atenção cuidadosa e prolongada aos fatos empíricos. Uma vez mais se verifica a importância fundamental do método indutivo experimental ou científico.  Foi ele detidamente estudado e exposto pelo gênio brasileiro de Pontes de Miranda.            
            Injustiça social, violência e paz. Parece certo, contudo, que os excessos de diferença em poder político e econômico geram atritos e conflitos sem conta — uns poucos cidadãos repletos de poder e com muito dinheiro, outros com quase nada (geralmente a maioria das pessoas pobres). É previsível o aumento de criminalidade nas classes assim mais empobrecidas da população. O Brasil, por exemplo, figura entre os onze países de mais criminalidade em todo o mundo, como se vê nas estatísticas[22]. Também este é um indício de que, longe de visões ideológicas, menos desigualdade traz mais paz — paz de espírito para as individualidades e paz mais geral para as sociedades (Povos).
Atenta contra a natura rerum o negar a existência de conflitos sociais, como se sabe em psicologia. Tal é o caso de tentar afastar, das ideias e sentimentos, a evidência de fatos empiricamente conhecidos até ao cansaço. Trata-se, logo, de erro de julgamento perigoso para todo pesquisador responsável. Ora bem, os conflitos apresentam-se em elevado grau de relatividade¸ no sentido de muitas diferenças espaço-temporais, de modo que podem eles ser reduzidos com medidas que, em outros lugares e tempos, terão quiçá os efeitos contrários. Uma vez mais: para o pensador responsável é importante educar-se com elementos de ciência positiva em que filosofar e poetar sejam elementos ou dados desse próprio conhecimento — conhecimento mais rigoroso, mais exato, mais preciso.[23]
Conservadores e reacionários. O crescimento de todas e todos em igualdade, o esforço em diminuir ao máximo as desigualdades, são ideias que, para os conservadores e mais ainda para os retrógrados ou reacionários, parecem “assunto de comunista”. São pessoas tomadas pelo medo de perdas, ou tomadas de ódio por quem pretende mudanças no prol de outrem mais desguarnecido, seja pela natureza seja pela degradação socialmente imposta pelos mais poderosos e mais ricos. 
Por fim temos de dizer, contrariamente ao imaginado por grande número de pessoas medrosas do que pensa ser socialismo marxista, dizer que o Estado, ou o Povo, que não cuidar de corajosamente aplicar estruturas jurídicas conducentes à diminuição das desigualdades sociais, será um Povo, uma sociedade, com problemas continuados em mal-estar público.  Faltar-lhe-ão paz, estabilidade, boa qualidade de vida. 
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Bibliografia e referências
            ARRETCHE, Marta (organizadora): Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos” (Editora Unesp).
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979.
______. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.
______. A sabedoria da inteligência. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.
______. O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.

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[10] São três os caminhos a seguir pelo Povo buscador de “qualidade de vida” (Democracia, liberdade e igualdade; leia-se PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979. Um jornalista brasileiro reconhecido como competente conta com artigo publicado no jornal Folha de São Paulo a respeito da insuficiência da só democracia, a despeito do seu valor. Está em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/199278-democracia-e-ideal-mas-nao-basta.shtml
 
[16] A obra contou com a participação de 23 pesquisadores de diversas áreas das ciências sociais, como demografia, economia, sociologia e ciência política, com bases em dados do IBGE, entre os anos de 1960 a 2010.
[21] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972; tomo I, página 203.

[23] Para se habituar com o método científico desde os antecedentes do pensamento convém ler, entre outras obras do gênio brasileiro sobre o assunto: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.  A sabedoria da inteligência. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960 e PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.