A QUESTÃO DA INELEGIBILIDADE DE LULA (3ª ed.)
Mozar Costa de Oliveira[1]
Neste ligeiro ensaio a nossa
ideia é a de suscitar algumas dúvidas e clareá-las. Trata-se do seguinte:
partimos do princípio segundo o qual ninguém pode ser havido como culpado
enquanto ainda pender de julgamento algum recurso da pessoa condenada. A
regra jurídica que rege a matéria é precisamente uma norma de direito havida
como “rígida”, isto é, imodificável por mera Emenda constitucional. Em sendo
assim, o artigo abaixo da Constituição Federal de 1988 está a viger e nenhum
poder da república o a pode alterar.
Eis esta regra jurídica
constitucional:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [ ][
]
LVII - ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;[ ][ ]
Parece
estarem corretos os estudiosos da ciência jurídica ao afirmarem o seguinte:
O trânsito em
julgado caracteriza coisa julgada formal. No caso da sentença de mérito, há
também a coisa julgada material, que consiste na imutabilidade dos efeitos da
decisão, que passa a ser substituta da própria lei entre as partes. A diferença
reside no conteúdo da decisão judicial: a coisa julgada material incide sobre
decisões de mérito, chamadas definitivas; a coisa julgada formal acoberta
decisões relativas a questões formais, chamadas de terminativas.
Um exemplo no Brasil em 2018. Tem-se que
o ex-presidente Lula, (1º) não podia ser preso com a só condenação pelo
tribunal de justiça do sul do país (TRF4); erraram os ministros do Supremo
Tribunal Federal que, em grau de recurso, deixaram que Lula continuasse preso.
Ao contrário, até mesmo de officio tinham
o dever jurídico de lhe conceder HC; (2º) por estas mesmas razões, ele ainda não
é pessoas inelegível — ainda cabe recurso contra a condenação de lavra do
tribunal federal regional da 4ª região.
Vejamos as causas
da inconstitucionalidade em não se permitir mais uma candidatura dele em 2018.
Na lei vulgarmente conhecida como “Lei da ficha limpa” ficou escrito assim, no
artigo 1º, nas alíneas a seguir indicadas, cujas passagens discutidas,
sublinhamos por nossa conta:
[...]
Por
fim, reza deste modo, mais à frente, outro artigo desta lei:
“Art. 26-A. Afastada pelo órgão
competente a inelegibilidade prevista nesta Lei Complementar, aplicar-se-á,
quanto ao registro de candidatura, o disposto na lei que estabelece normas para
as eleições.”
Percebe-se, pois, que tampouco na
“lei da ficha limpa” está conforme a Constituição Federal de 1988 nos trechos
que, sublinhados, alinhamos acima. Aludem à imediata aplicabilidade destas
regras jurídicas antes de passar em julgado a condenação — no caso condenação
do ex-presidente Lula. Sabido é que a dita prisão foi determinada numa votação
de 6x5.[2]
Seria de nenhuma monta a proposição
jurídica segundo a qual tais erros na condenação do ex-presidente Lula não
teriam existido por ela haver sido determinada no Supremo Tribunal Federal em
maioria de votos. Parece claro que pode haver equívocos nos julgamentos de todo
e qualquer tribunal, do Brasil, do mundo...
Claro está que o nosso Supremo Tribunal
Federal muitas vezes pode errar. Aliás, as próprias súmulas vinculantes do
Supremo Tribunal Federal podem e devem ser alteradas quando se descubra que
contenham erro de direito. Isto consta da Constituição Federal de 1988, art.
103-A:
Art. 103 - A: "o Supremo Tribunal
Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços
dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional,
aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito
vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração
pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como
proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei" .
Quadra
aqui uma observação sobre a teoria do conhecimento (“gnosiologia”) — para se
saber o que a coisa é — proposição
jurídica correta, ou incorreta —, é de mister ao pensador afastar para longe, alongar
de si os incômodos que estejam a pairar na mente, alimpá-los de escórias
estranhas àquilo o que a coisa é. Quando
se alude aqui a àquilo que a coisa é,
está a falar-se da coisa (“res” na terminologia da velha
escolástica). Fácil decerto não é, mas possível, isto sim. Entre as
estranhezas, que são em grande número, duas são particularmente perigosas: as
relativas ao mundo político e ao universo da economia. Cumpre, a este respeito,
estudar a teoria do conhecimento em obras filosóficas de algum gênio.[3]
O fato relevante de que ora
tratamos ligeiramente é se foram conformes a direito ou contrárias a direito (a) a prisão de Lula pelo só fato de ter
sido condenado a ela um segunda instância (julgamento da apelação no tribunal
federal regional da 4ª região, TFR4); (b)
se por causa dessa condenação o ex-presidente Lula se tornou inelegível.
Ora bem, quer nos parecer, e
afirmamos convictamente estas proposições, que houve erro judicial em ambos
estes casos, porque toda regra jurídica escrita na Constituição Federal de 1988,
como esta abaixo novamente transcrita
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
LVII - ninguém será considerado culpado
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...]
Ela, repetimos, está acima dos ditos nas leis
infraconstitucionais.
Objeção a esta tese sobre a lei da “Ficha Limpa” e resposta a ela.
Há, sim, quem argumenta contrariamente à prevalência da regra jurídica
constitucional do art. 5º, inc. LVII — a que não permite a prisão do
criminalmente condenado pelo fato de, em segunda instância, ser confirmada a
sentença condenatória criminal. O fundamento jurídico dessa objeção seria outra
regra jurídica constitucional, segundo a qual a pessoa condenada pode ser
recolhida à prisão sempre que para isto houver ordem
escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Sim, está efetivamente
escrito na Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso LXI, o seguinte:
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou
por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo
nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em
lei; [...]
Seria, porém, uma contradição que
a autoridade judiciária pudesse expedir ordem de prisão por ordem
escrita e fundamentada [...] se a pessoa,
condenada na dita instância superior, ainda é havida como inocente como
se regrou no inciso seguinte — LVII - ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória.
Em sendo, pois, assim, não era mesmo de mister que pelos constituintes de 1988
fosse redigida regra jurídica expressa contra a prisão da pessoa condenada —
seria o mesmo que o condenado ser havido como inocente, mas mesmo inocente, ser
levado à prisão. Quer nos parecer, então, que esse raciocínio, por pretender
literalidade em norma jurídica contrária à inocência do condenado, não levou em
linha de conta a relevância tanto da liberdade física, como do mais que a
completa nas nossas normas constitucionais.
E há mais: o próprio Preâmbulo da
Constituição Federal de 1988 põe em relevo tanto a importância da liberdade
como igualmente a de outros direitos estreitamente ligados a ela, entre os
quais figuram a segurança e o bem-estar. Eis esse
prólogo:
Nós, representantes do
povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, [...]
Quadra notar que também em outros
países vige regra igual à nossa. Daremos uns poucos exemplos; são os trazidos
pelo jornal Brasil de Fato, ed., ESPECIAL
No 7, 2018, página 3, em colaboração feita pelo subprocurador geral da
república aposentado, Dr. Juarez Tavares — https://www.escavador.com/sobre/1304629/juarez-estevam-xavier-tavares.
Segundo o código de processo
penal alemão, isto é, a Strafprocessordnung, art. 449, que é o seguinte:
Strafurteile sind nicht vollstreckbar,
bevor sie rechtskräftig geworden sind, cuja tradução é “As sentenças criminais não são executáveis
antes de se tornarem definitivas”. Ora bem, definitiva é a sentença insusceptível de
qualquer outro recurso. Quer isto dizer que, enquanto houver recurso
interposto, a condenação criminal não passa em julgado, não faz coisa julgada,
e o réu, havido como inocente, não pode ser, preso.
É o mesmo que presunção de inocência,
tal como a temos no art. 5º, Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso LVII, o seguinte:
LVII - ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...]
O mesmo ilustre subprocurador
aposentado, Dr. Juarez Tavares, lembra ainda a regra jurídica da constituição
italiana: Art. 27 — [...] L’imputato non è considerato colpevole sino
alla condanna definitiva. [...]. O sentido é o mesmo da Constituição
Federal de 1988 e da constituição alemã, porque a “condanna definitivai” (condenação definitiva) é aquela de que já
não caiba recurso algum.
No tocante
aos Estados Unidos, escreve o seguinte o mesmo Dr. Juarez Tavares, na parte
final do seu artigo intitulado “Em todos
os países, exige-se o trânsito em julgado para a execução pena”:
[...] “em várias decisões da Corte Suprema daquela país, só
se executa a sentença penal condenatória depois do trânsito em julgado”.
Rápidas conclusões
teóricas (A) para pelo menos se errar
mais raramente também em matéria jurídica, cumpre estudar e enunciar o
resultado desse estudo pelo método científico (indutivo-experimental; (B)
qualquer lei infraconstitucional precisa ser pensada também em face da
Constituição vigente; (C) a norma infraconstitucional contrária a normas
constitucionais, embora vigente, é inválida, de modo que não pode ser aplicada.
Aplicações práticas (1) A dita prisão do
ex-presidente Lula foi ilegalmente decretada; (2) ele tinha de ser solto (a
menos que, por outras causas eventualmente existentes, caibesse a prisão
preventiva — código de processo penal art. 312 e § único) ; (2) o ex-presidente
Lula, por não ter estado inelegível, podia concorrer ao cargo de presidente da
república no corrente ano de 2018.
*-*-*
Santos, 04.08.2018
[1]
Bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid),
promotor de justiça por pouco menos de dois anos (Estado de São Paulo), mestre
e doutor em direito (USP), desembargador aposentado (Tribunal de Justiça de São
Paulo), membro da “Academia Santista de Letras”, professor de direito durante
29 anos (Universidade Católica de Santos); atualmente pesquisador, escritor e advogado
parecerista.
[2] Veja-se a contagem neste site https://g1.globo.com/politica/noticia/stf-julgamento-habeas-corpus-lula-4-de-abril.ghtml
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