segunda-feira, 6 de janeiro de 2020


A QUESTÃO DA INELEGIBILIDADE DE LULA (3ª ed.)

Mozar Costa de Oliveira[1]

Neste ligeiro ensaio a nossa ideia é a de suscitar algumas dúvidas e clareá-las. Trata-se do seguinte: partimos do princípio segundo o qual ninguém pode ser havido como culpado enquanto ainda pender de julgamento algum recurso da pessoa condenada. A regra jurídica que rege a matéria é precisamente uma norma de direito havida como “rígida”, isto é, imodificável por mera Emenda constitucional. Em sendo assim, o artigo abaixo da Constituição Federal de 1988 está a viger e nenhum poder da república o a pode alterar.
Eis esta regra jurídica constitucional:   
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [ ][ ]
 LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;[ ][ ]

Parece estarem corretos os estudiosos da ciência jurídica ao afirmarem o seguinte:
O trânsito em julgado caracteriza coisa julgada formal. No caso da sentença de mérito, há também a coisa julgada material, que consiste na imutabilidade dos efeitos da decisão, que passa a ser substituta da própria lei entre as partes. A diferença reside no conteúdo da decisão judicial: a coisa julgada material incide sobre decisões de mérito, chamadas definitivas; a coisa julgada formal acoberta decisões relativas a questões formais, chamadas de terminativas.
Um exemplo no Brasil em 2018. Tem-se que o ex-presidente Lula, (1º) não podia ser preso com a só condenação pelo tribunal de justiça do sul do país (TRF4); erraram os ministros do Supremo Tribunal Federal que, em grau de recurso, deixaram que Lula continuasse preso. Ao contrário, até mesmo de officio tinham o dever jurídico de lhe conceder HC; (2º) por estas mesmas razões, ele ainda não é pessoas inelegível — ainda cabe recurso contra a condenação de lavra do tribunal federal regional da 4ª região.
Vejamos as causas da inconstitucionalidade em não se permitir mais uma candidatura dele em 2018. Na lei vulgarmente conhecida como “Lei da ficha limpa” ficou escrito assim, no artigo 1º, nas alíneas a seguir indicadas, cujas passagens discutidas, sublinhamos por nossa conta:

[...]


Por fim, reza deste modo, mais à frente, outro artigo desta lei:

 “Art. 26-A.  Afastada pelo órgão competente a inelegibilidade prevista nesta Lei Complementar, aplicar-se-á, quanto ao registro de candidatura, o disposto na lei que estabelece normas para as eleições.”

            Percebe-se, pois, que tampouco na “lei da ficha limpa” está conforme a Constituição Federal de 1988 nos trechos que, sublinhados, alinhamos acima. Aludem à imediata aplicabilidade destas regras jurídicas antes de passar em julgado a condenação — no caso condenação do ex-presidente Lula. Sabido é que a dita prisão foi determinada numa votação de 6x5.[2]
            Seria de nenhuma monta a proposição jurídica segundo a qual tais erros na condenação do ex-presidente Lula não teriam existido por ela haver sido determinada no Supremo Tribunal Federal em maioria de votos. Parece claro que pode haver equívocos nos julgamentos de todo e qualquer tribunal, do Brasil, do mundo...
Claro está que o nosso Supremo Tribunal Federal muitas vezes pode errar. Aliás, as próprias súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal podem e devem ser alteradas quando se descubra que contenham erro de direito. Isto consta da Constituição Federal de 1988, art. 103-A:
Art. 103 - A: "o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei" .


            Quadra aqui uma observação sobre a teoria do conhecimento (“gnosiologia”) — para se saber o que a coisa é — proposição jurídica correta, ou incorreta —, é de mister ao pensador afastar para longe, alongar de si os incômodos que estejam a pairar na mente, alimpá-los de escórias estranhas àquilo o que a coisa é. Quando se alude aqui a àquilo que a coisa é, está a falar-se da coisa (“res” na terminologia da velha escolástica). Fácil decerto não é, mas possível, isto sim. Entre as estranhezas, que são em grande número, duas são particularmente perigosas: as relativas ao mundo político e ao universo da economia. Cumpre, a este respeito, estudar a teoria do conhecimento em obras filosóficas de algum gênio.[3]

O fato relevante de que ora tratamos ligeiramente é se foram conformes a direito ou contrárias a direito (a) a prisão de Lula pelo só fato de ter sido condenado a ela um segunda instância (julgamento da apelação no tribunal federal regional da 4ª região, TFR4); (b) se por causa dessa condenação o ex-presidente Lula se tornou inelegível.
Ora bem, quer nos parecer, e afirmamos convictamente estas proposições, que houve erro judicial em ambos estes casos, porque toda regra jurídica escrita na Constituição Federal de 1988, como esta abaixo novamente transcrita
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
 LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...]
Ela, repetimos, está acima dos ditos nas leis infraconstitucionais.
Objeção a esta tese sobre a lei da “Ficha Limpa” e resposta a ela. Há, sim, quem argumenta contrariamente à prevalência da regra jurídica constitucional do art. 5º, inc. LVII — a que não permite a prisão do criminalmente condenado pelo fato de, em segunda instância, ser confirmada a sentença condenatória criminal. O fundamento jurídico dessa objeção seria outra regra jurídica constitucional, segundo a qual a pessoa condenada pode ser recolhida à prisão sempre que para isto houver ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Sim, está efetivamente escrito na Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso LXI, o seguinte:
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; [...]

Seria, porém, uma contradição que a autoridade judiciária pudesse expedir ordem de prisão por ordem escrita e fundamentada [...] se a pessoa, condenada na dita instância superior, ainda é havida como inocente como se regrou no inciso seguinte — LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
            Em sendo, pois, assim, não era mesmo de mister que pelos constituintes de 1988 fosse redigida regra jurídica expressa contra a prisão da pessoa condenada — seria o mesmo que o condenado ser havido como inocente, mas mesmo inocente, ser levado à prisão. Quer nos parecer, então, que esse raciocínio, por pretender literalidade em norma jurídica contrária à inocência do condenado, não levou em linha de conta a relevância tanto da liberdade física, como do mais que a completa nas nossas normas constitucionais.
E há mais: o próprio Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 põe em relevo tanto a importância da liberdade como igualmente a de outros direitos estreitamente ligados a ela, entre os quais figuram a segurança e o bem-estar. Eis esse prólogo:
 Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, [...]  

Quadra notar que também em outros países vige regra igual à nossa. Daremos uns poucos exemplos; são os trazidos pelo jornal Brasil de Fato, ed., ESPECIAL No 7, 2018, página 3, em colaboração feita pelo subprocurador geral da república aposentado, Dr. Juarez Tavares — https://www.escavador.com/sobre/1304629/juarez-estevam-xavier-tavares.
Segundo o código de processo penal alemão, isto é, a Strafprocessordnung, art. 449, que é o seguinte: Strafurteile sind nicht vollstreckbar, bevor sie rechtskräftig geworden sind, cuja tradução é As sentenças criminais não são executáveis ​​antes de se tornarem definitivas”. Ora bem, definitiva é a sentença insusceptível de qualquer outro recurso. Quer isto dizer que, enquanto houver recurso interposto, a condenação criminal não passa em julgado, não faz coisa julgada, e o réu, havido como inocente, não pode ser, preso.
            É o mesmo que presunção de inocência, tal como a temos no art. 5º, Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso LVII, o seguinte:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...]

            O mesmo ilustre subprocurador aposentado, Dr. Juarez Tavares, lembra ainda a regra jurídica da constituição italiana: Art. 27 — [...] L’imputato non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva. [...]. O sentido é o mesmo da Constituição Federal de 1988 e da constituição alemã, porque a “condanna definitivai” (condenação definitiva) é aquela de que já não caiba recurso algum.
            No tocante aos Estados Unidos, escreve o seguinte o mesmo Dr. Juarez Tavares, na parte final do seu artigo intitulado “Em todos os países, exige-se o trânsito em julgado para a execução pena”: 
[...] “em várias decisões da Corte Suprema daquela país, só se executa a sentença penal condenatória depois do trânsito em julgado”.

Rápidas conclusões teóricas (A) para pelo menos se errar mais raramente também em matéria jurídica, cumpre estudar e enunciar o resultado desse estudo pelo método científico (indutivo-experimental; (B) qualquer lei infraconstitucional precisa ser pensada também em face da Constituição vigente; (C) a norma infraconstitucional contrária a normas constitucionais, embora vigente, é inválida, de modo que não pode ser aplicada.
            Aplicações práticas (1) A dita prisão do ex-presidente Lula foi ilegalmente decretada; (2) ele tinha de ser solto (a menos que, por outras causas eventualmente existentes, caibesse a prisão preventiva — código de processo penal art. 312 e § único) ; (2) o ex-presidente Lula, por não ter estado inelegível, podia concorrer ao cargo de presidente da república no corrente ano de 2018.
*-*-*
Santos, 04.08.2018




[1] Bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), promotor de justiça por pouco menos de dois anos (Estado de São Paulo), mestre e doutor em direito (USP), desembargador aposentado (Tribunal de Justiça de São Paulo), membro da “Academia Santista de Letras”, professor de direito durante 29 anos (Universidade Católica de Santos); atualmente pesquisador, escritor e advogado parecerista.

[3] Temos um no Brasil, falecido aos 87 anos —   Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda

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